Desafiado pelo Matias Alves (do Terrear) a escrever um texto para o Correio da Educação sobre a os quotidianos escolares, andei vários dias à procura de palavras de esperança, de territórios felizes, de um olhar luminoso através das negras nuvens. E não me saiu nada. Não me saiu nada que pudesse ser "publicado".
Nos últimos tempos olho em volta e vejo tanto cansaço, tanta desesperança, que as palavras resultam sempre pobres e amarguradas. Decidi então que falaria de questões concretas: a revolução digital que se inicia nas escolas e os desafios do futuro. Pretendia uma coisa em jeito de provocação, que desassossegasse.
No entanto, quando os nossos olhos estão turvados é impossível vislumbrar a claridade. Afinal de contas, nunca falamos se não de nós mesmos... Como se pode aferir no texto que acabei por enviar e que se encontra no Correio da Educação de 5 de Novembro. Já agora, reproduzo o texto aqui (com ligeiras alterações):
O jogo acabou de começar e é já um jogo perdido.
Nos próximos dez anos a educação vai sofrer alterações mais profundas do que nos últimos séculos conjuntamente considerados.
Vejamos: o que (ainda) é uma sala de aula? Um professor, vinte e tal alunos, um quadro e giz. O que será uma sala de aula de uma (boa) escola daqui a dez anos? Nada. De outro modo: o conceito de "sala de aula" perderá propriedade. Haverá salas, alunos e (poucos) professores. Mas não "salas de aula". Em boa verdade não haverá "aulas". O conceito de "aula" coloca o professor no centro. E o centro vai definitivamente deslocar-se para o aluno. (Pois, eu sei, isto é a conversa estafada do construtivismo que não deu em nada. Mas não deu em nada porque ainda não dispunha das ferramentas necessárias. Do mesmo modo que a globalização não deu em nada até terem chegado os barcos, os aviões, os satélites, as televisões...).
As ferramentas da revolução estão agora a chegar às escolas. Chamam-se computadores pessoais. Ao longo dos últimos anos, sempre que se fala da entrada dos computadores na escola, logo alguém se apressa a sossegar os espíritos: "Mas os professores serão sempre necessários!". Mentira piedosa. O número de professores necessários será claramente menor. Arrisquemos: metade. Parece-me, por exemplo, que ao longo dos primeiros nove anos de escolaridade um só professor será suficiente para uma turma de vinte alunos. Os computadores vão transformar radicalmente a escola: os lugares, os tempos, os agentes, o currículo. Por exemplo: deixará de existir "disciplinas". Serão substituídas por "actividades" e "projectos". Já hoje, há disciplinas que não têm razão de existir: são meramente descritivas, pouco mais do que catálogos de conhecimentos. Não exigem a presença de um professor. Exemplos há muitos. Qualquer adolescente minimamente autónomo que saiba ler, pesquisar, seleccionar, compilar e tratar informação, possui as competências bastantes para apreender conteúdos de Geografia, História, Ciências e Inglês. E até muita Matemática. E até algum Português. O professor passará a desempenhar um papel fundamental apenas nas vertentes intrinsecamente humanas: atitudes e valores.
Voltemos ao início: afirmei que este é já um jogo perdido. Com efeito, o sistema educativo português reúne todas as condições para perder a batalha da "sociedade da informação". Os professores, provavelmente mais do que em qualquer outra época, encontram-se profissionalmente deprimidos. Os últimos anos foram extremamente penalizadores. Além dos domínios simbólico (estatuto social) e substantivo (carreiras e remunerações), as efectivas condições de trabalho agravaram-se. A sobrecarga horária a que foram sujeitos, numa deriva "proletarizante", veio roubar-lhes os recursos fundamentais para aderirem à mudança: a energia renovadora, o entusiasmo mobilizante, a reflexão fecunda. O computador é uma ferramenta delicada e exigente — exige paciência, persistência, prática, ou seja, o que cada vez menos os professores têm: tempo. Além disso, o aumento da idade da reforma vai manter no sistema, mais tempo do que seria desejável, muitas das pessoas a quem a revolução digital, iniciada há quinze anos, passou ao lado.
Recentemente, fomos informados de que nos próximos tempos as escolas serão "bombardeadas" com equipamento informático. Boas intenções. Mas já estou a imaginar muito hardware desaproveitado enquanto, esmagados, os professores se afadigam a dar resposta ao monstruoso monumento formal em que a vida escolar se transformou nos últimos anos: planificações, articulações, reuniões, planos de recuperação, actas, grelhas de avaliação, mais reuniões... A lógica jurídica entrou no sistema de ensino e está a matá-lo. Em vez de terem uma atitude criativa, desbravando novos caminhos, os professores defendem-se dos encarregados de educação, defendem-se das inspecções, defendem-se de toda uma sociedade que lhes aponta o dedo quando se sabe os resultados dos exames. Tudo minuciosamente explicitado, cada decisão detalhadamente justificada. Neste clima, não há uma verdadeira disponibilidade para fazer o necessário: aproveitar a chegada da nova ferramenta e repensar de cima a baixo os modos de trabalho escolar. Essa é uma tarefa colossal, extremamente desgastante. Os países do primeiro mundo já a iniciaram. Nós vamos perder mais uma oportunidade.
Como é óbvio, o que mais desejo é estar redondamente enganado.